Há quem não abdique de ler em papel e frequentar livrarias. Porque ali encontram os livreiros, peritos que lhes dão a conhecer novas páginas e novos mundos, e com quem partilham o amor aos livros.
“De todos os instrumentos do homem, o mais espantoso é, sem dúvida nenhuma, o livro.” Palavras do escritor argentino Jorge Luis Borges, que traduzem o poder desse objeto mágico. E apesar do surgimento de novos suportes para este ‘instrumento espantoso’, o livro em papel continua, globalmente, a ser o formato preferido dos leitores.
Um estudo da Advertising & Media Outlook, realizado em dez países, mostra a percentagem da população que, em 2021, comprou um livro impresso e um ebook. E os números são esclarecedores. Por exemplo, na vizinha Espanha, 48,8% das pessoas compraram livros impressos, contra 14,6% que o fizeram em formato digital; na Alemanha, foram 58,3% e 10,8%, respetivamente; no Reino Unido, 48,5% e 20,3%; em França, 51,4% e 7,8%.
Portugal não entrou neste estudo, mas existem dados sobre o tema. Segundo o relatório “Práticas Culturais dos Portugueses: Inquérito 2020”, encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian ao Instituto de Ciências Sociais (ICS), 39% dos inquiridos leram pelo menos um livro impresso nos 12 meses anteriores ao inquérito e apenas 10% leram um livro em formato digital.
E se os livros em papel continuam a ser os preferidos dos leitores, as livrarias são o local de eleição para os adquirir. Segundo números da consultora GfK, avançados pela APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros), 68,4% dos livros vendidos em Portugal no terceiro trimestre deste ano chegaram à mão dos leitores no ambiente especial de uma livraria.
A My Planet ouviu seis livreiros, de quatro livrarias espalhadas pelo país, para perceber o que procuram os leitores quando entram nestes espaços forrados a lombadas em papel.
“Um bom livreiro sabe ‘ler’ o cliente”
Para Cátia Monteiro e Arnaldo Vila Pouca, livreiros da “Flâneur”, no Porto, “os leitores procuram um atendimento personalizado”. Francisca Prieto, da “Indie, Not a Bookshop”, em Cascais, também destaca a relação próxima entre o livreiro e o leitor e a capacidade do primeiro saber não só aconselhar, como também ‘espicaçar’ o segundo: “Um bom livreiro sabe ler o cliente que está à sua frente e atreve-se a desafiá-lo um pouco.”
Francisca Prieto – Indie, Not a Bookshop
Sofia Afonso, da “100ª Página”, em Braga, concorda: “Temos de saber ouvir, estar atentos. Vamos ao encontro do que a pessoa procura, mas também sabemos deslocar o leitor para novas descobertas.” Helena Veloso, que dirige esta livraria com Sofia Afonso há 23 anos, acrescenta que se estabelece uma relação única com cada cliente, que não é unilateral: “Está sempre em construção, e nós, livreiros, também recebemos. Por vezes, vamos procurar determinados títulos por indicação dos clientes. Não há hierarquia.”
Helena Veloso e Sofia Afonso – 100ª Página
“Surpreender o visitante”
Disponibilizar autores ou livros menos divulgados ou de pequenas editoras é um dos papéis importantes das livrarias, assumido com especial empenho pelas independentes. Francisca Prieto destaca essa ‘missão’: “A nossa função não é oferecer aos clientes aquilo que encontram em todo o lado, mas antes fazê-los descobrir coisas que nem sabem que existem. É essa a magia.”
Ana Coelho, da “Palavra de Viajante”, a única livraria de viagens existente em Portugal, disponibiliza, seguramente, muitos títulos que não existem noutros espaços: “O principal pilar da livraria são os clientes que se foram tornando habituais e que aparecem para ver o que temos de novo ou apenas para se deixarem surpreender.”
Ana Coelho – Palavra de Viajante
Na “100ª Página” também é garantido que a oferta não se limita aos best-sellers e às novidades. “Enquanto livraria independente, o nosso papel é tentar surpreender o visitante com projetos marginais. É tentar ter segmentos de grande escala, mas também de média escala e maior diversidade do que a lógica de mercado impõe”, afirma Sofia Afonso.
Cátia Monteiro e Arnaldo Vila Pouca são da mesma opinião: “Os clientes procuram aqui uma oferta de livros mais cuidada, com fundos de catálogo e edições independentes que muitas vezes não têm lugar nos grandes espaços.”
Cátia Monteiro e Arnaldo Vila Pouca – Flâneur
“O livro impresso é tecnologia avançada”
Quanto à preferência pelos livros impressos, numa época dominada pelos gadgets e pelos ecrãs, os livreiros não se surpreendem. “O papel é o melhor suporte para um texto. Pode durar mil anos. O suporte digital não perdura e não é seguro”, afirma, sem hesitar, Helena Veloso. Sofia Afonso acrescenta: “O livro impresso é tecnologia avançada e tem sempre conseguido readaptar-se. É determinante para o desenvolvimento cognitivo, que depende muito do papel e do toque, tanto na leitura, como na escrita. Sabe-se que aprendemos melhor e memorizamos mais, se lermos e escrevermos em papel.”
Os livreiros da “Flâneur” levam a sua convicção mais além: “Enquanto houver Humanidade, haverá histórias e a necessidade do seu registo físico.” Uma opinião corroborada por Ana Coelho: “O livro em papel não morreu, nem morrerá tão cedo. Faz parte intrínseca da experiência da leitura, do mergulho nas palavras e nos mundos criados pelos autores, do prazer e da companhia que proporcionam.”
As livrarias
100ª Página
Nasceu em 1999, em Braga. Em 2005 mudou-se para a Casa Rolão, um edifício histórico, classificado como Imóvel de Interesse Público. Tem uma cafetaria com esplanada, um jardim e um ambiente que convida o leitor a demorar-se. A casa vive dos e pelos livros, mas também se enche com tertúlias, recitais de poesia, sessões com contadores de histórias ou sessões com DJs. “Queremos que seja um espaço aberto à comunidade e de construção de ligações”, afirmam as sócias fundadoras Sofia Afonso e Helena Veloso. https://centesima.com/
Flâneur
Começou por ser uma livraria itinerante, com pouco mais do que uma bicicleta para fazer entregas de livros ao domicílio. Instalou-se num espaço físico há sete anos e o projeto agora é também uma editora. Tudo começou com o sonho antigo de dois amigos que trabalhavam juntos noutra livraria. Cátia Monteiro e Arnaldo Vila Pouca juntaram esforços e criaram um ambiente acolhedor, muito próximo da Casa da Música, no Porto, onde a bicicleta continua a existir e a criar identidade. https://flaneur.pt/
Palavra de Viajante
A única livraria de viagens em Portugal é a concretização de um sonho antigo de duas amigas que têm em comum as paixões de ler e viajar. Em 2011, Ana Coelho e Dulce Gomes abriram na Rua de São Bento, em Lisboa, uma livraria de bairro onde se pode conversar sobre viagens, ver uma exposição ou assistir ao lançamento de um livro. “Ter uma loja de rua numa zona onde há residentes, serviços e comércio tradicional corresponde à nossa ideia de cidade amigável e sustentável”, afirma Ana Coelho. https://www.palavra-de-viajante.pt/
Indie, Not a Bookshop
Nasceu em 2020, em plena pandemia. Na Cidadela de Cascais, Francisca Prieto criou um novo espaço, ao lado da (também sua) livraria solidária Déjà Lu. A Indie destaca-se pela vasta oferta de livros em língua inglesa. “Já somos uma referência nesta área, com títulos em inglês que não é habitual encontrar em Portugal”, afirma a livreira. Além disso, há uma aposta na proximidade entre autores e leitores, com muitos livros autografados e eventos como workshops de escrita ou conversas sobre livros. A Indie tem ainda a “Caixa Fora da Caixa”: disponível por subscrição, é uma espécie de cabaz literário temático que junta aos livros alguns objetos, em associações com arte e humor. https://www.facebook.com/indienotabookshop