Já nos é difícil imaginar a vida sem tecnologia digital. Mas precisamos de regras no seu uso, para fazer face aos riscos. Quanto mais clicarmos no botão do “off”, mais a nossa vida real fica “on”.
Os portugueses dedicam todos os dias uma média de 7 horas e 56 minutos a utilizar a internet. Neste tempo de ecrã, 2h28m são passadas nas redes sociais e 38 minutos a jogar consola. Os dados são do relatório “Digital 2022” da Data Reportal, que também indica que as horas de utilização de internet se dividem entre 4h22m passadas em computador ou tablet e 3h34m no telemóvel.
São quase oito horas, um terço do nosso dia. É metade do tempo que passamos acordados. “Independentemente de estarmos a trabalhar, nas redes sociais, a ver um vídeo ou a jogar um jogo, este tempo precisa de ser doseado. Porque tem, efetivamente, alguns riscos”, refere Filipa Jardim da Silva, psicóloga clínica e fundadora da Academia Transformar. “Não se trata de diabolizar a tecnologia e o online”, esclarece, “mas antes de alertar para boas práticas e cuidados a ter no seu uso”.
Vícios virtuais, riscos reais
Um excesso de tempo nos ecrãs pode levar-nos ao isolamento. “Podemos começar a confundir o computador com o nosso melhor amigo e interações virtuais com relações reais, ao vivo e a cores”, explica Filipa Jardim da Silva, para reforçar: “O digital coloca-nos facilmente em comunicação com qualquer pessoa, em qualquer parte do globo, mas precisamos perceber que isso não substitui uma interação ao vivo – o nosso cérebro não dispara o mesmo nível de satisfação e de prazer, em termos hormonais, quando estamos online com uma pessoa ou quando estamos fisicamente com ela”.
Os níveis de sedentarismo são também um tópico muito presente quando falamos de excesso de tecnologia. “Os tempos de ecrã são períodos em que não nos movimentamos, não desenvolvemos consciência corporal, não estimulamos, verdadeiramente, os nossos sentidos, e isso tem consequências em termos de saúde física e psicológica”, esclarece.
Outra componente muito afetada é o sono: “Quando a última coisa que fazemos antes de adormecemos é olhar para o ecrã do telemóvel, quando acordamos e o nosso primeiro instinto é ver o telemóvel, a televisão ou o computador… isto altera a qualidade do nosso sono, com repercussões em termos das nossas funções cognitivas, memória, sistema imunitário e regulação emocional”, refere Filipa Jardim da Silva.
Como uma droga
A adição tecnológica é outro risco quando o nosso tempo de ecrã supera o tempo sem ecrã. “E assume as mesmas características de qualquer outra dependência”, explica o neurologista Martin Lauterbach. “A pessoa não consegue parar, mesmo sabendo que é prejudicial, e há sintomas de privação, como ansiedade e inquietude”.
“Hoje, há pessoas que já não existem sem um ecrã nas suas mãos”, conta Filipa Jardim da Silva. “Vamo-nos apercebendo de certos fenómenos, como o FOMO (Fear of missing out), que é este ‘medo de ficar de fora’, em que há sempre a necessidade de saber o que está a acontecer via redes sociais, de estarmos permanentemente ligados. Há casos em que isso salta fora do controlo da pessoa e faz com que ela já não seja capaz de dizer não ao ecrã.”
(Des)concentração mental
Nicholas Carr, autor de “The shallows: what the internet is doing to our brains” (“Os superficiais: o que a internet está a fazer aos nossos cérebros”), finalista do prémio Pulitzer na categoria não ficção geral, diz que utilizar a internet é como tentar ler um livro enquanto se fazem as palavras cruzadas. “A internet é um meio baseado na interrupção”, defende. Fez-nos perder a capacidade de nos focarmos num único assunto, deixando a nossa mente caótica, impaciente e com menos capacidade para pensamentos aprofundados.
Isto pode ser problemático, segundo Filipa Jardim da Silva, uma vez que “a atenção é uma competência-chave para o nosso bem-estar global, para a nossa saúde mental, e precisa de ser protegida”.
Martin Lauterbach corrobora esta ideia, defendendo que a falta de foco potenciada por estas tecnologias digitais “é perturbadora e contraproducente”. O importante, enfatiza, é adotarmos uma “higiene tecnológica”, que nos permita usufruir do que o digital e a internet têm de bom, minimizando os riscos. “É possível, mas exige muita disciplina.”
O que podemos fazer para equilibrar a balança?
“Vale a pena não nos esquecermos das nossas bases enquanto seres humanos”, responde Filipa Jardim da Silva, esclarecendo: “Nós temos um corpo e um cérebro, e precisamos de estimular tanto um como o outro. É importante tocarmos nas coisas, senti-las, cheirá-las.”
A interação corpo-cérebro é também evidenciada por Martin Lauterbach: “A parte tátil, sensorial, é essencial. Nós não somos só cérebro. A própria escrita manuscrita, por exemplo, interage com a compreensão e a aprendizagem das palavras, exatamente porque ativa o movimento, a motricidade”.
O papel surge, assim, como um importante estímulo: tocamo-lo, sentimos a textura, cheiramos… “Os dispositivos eletrónicos podem ser complementares, mas não deveriam nunca substituir o papel, nomeadamente pela estimulação dos sentidos que este proporciona”, explica a psicóloga. “É importante não deixarmos para trás aquilo que sempre nos fez bem e não acharmos que um livro digital pode substituir um livro em papel, ou que um ecrã pode substituir uma folha de papel. A complementaridade e o respeito pela nossa cultura, pela nossa herança, pela nossa corporalidade, é importante e o equilíbrio é necessário”.