As crianças brincam cada vez menos na rua. Uma tendência que a pandemia veio acentuar e que, a manter-se, ameaça trazer graves consequências no desenvolvimento físico e emocional infantil.
As crianças vivem (e brincam) cada vez mais entre paredes: ir para a rua, que era um hábito natural e indissociável da infância, está a tornar-se uma prática rara. Segundo o inquérito “Portugal a Brincar”, realizado pela Escola Superior de Educação de Coimbra, em parceria com o Instituto de Apoio à Criança, em Portugal, só 2,2 por cento das crianças até aos 10 anos brincam na rua. Por outro lado, 65,3% dos miúdos incluem tablets e smartphones nas suas brincadeiras e 21,6% já dispõe dos seus próprios aparelhos.
O panorama é quase assustador. Um estudo da Sociedade Portuguesa de Pediatria diz que o tempo despendido diariamente em frente ao ecrã em crianças com uma média de cinco anos é de 54,3%, um valor superior ao recomendado pela Academia Americana de Pediatria. E, há uns anos, um estudo internacional da Unilever efetuado em 10 países demonstrou que os presos têm mais tempo livre (fora das celas) do que as crianças: duas horas de sol e ar todos os dias, enquanto a maioria das crianças desfruta menos de uma hora (um terço das crianças dos 5 aos 12 anos passa menos de 30 minutos fora de casa). O famoso estudo daria origem à campanha “Libertem as Crianças”, título que Carlos Neto, professor catedrático de Motricidade e um dos maiores especialistas mundiais na área da brincadeira, emprestou ao seu mais recente livro.
“Não é com brinquedos que têm de brincar, é com os materiais que a Natureza oferece”, defende, acusando uma “cultura do medo”, que enclausura as crianças e não as deixa arriscar nem ser “mais selvagens”.
Vantagens e repercussões
Cientistas e pediatras concordam que brincar ao ar livre contribui para um bom desenvolvimento físico, cognitivo e intelectual, além de combater o sedentarismo e a obesidade. Diversos estudos desenvolvidos pela National Association for the Education of Young Children (NAEYC) demonstraram que brincar no meio da natureza desperta a curiosidade, o sentido de descoberta, a experimentação e a vontade de querer saber mais.
A Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), por sua vez, nota que brincar em liberdade é um fator protetor contra o stress, a ansiedade ou mesmo problemas psíquicos mais graves.
Conscientes do demasiado tempo passado em casa pelas crianças em virtude da pandemia, os pediatras alertam que isto terá “repercussões óbvias para o seu neurodesenvolvimento e saúde mental”. E, lembrando que brincar passa “pelo explorar do meio exterior, por enfrentar novos desafios, pelo correr sem destino, regras nem obrigações, por risos e por choros”, apelam a que se deixem as crianças sair de casa e brincar.
Porque a responsabilidade é nossa, refere Francisco Lontro, coordenador do “Brincar de Rua”, um projeto que pretende recuperar relações de comunidade e atrair crianças e adultos para a rua: “Não há criança que não goste de estar na rua, da natureza, da ideia de brincar, mas ‘estar’ implica tempo, disponibilidade mental, para deixar as coisas acontecer. “Não é justo dizer que é difícil tirar os miúdos de casa depois de andarmos anos a inundá-los de TV, smartphones e consolas”.
Temos de dar a oportunidade aos nossos filhos de brincarem como nós brincámos quando éramos crianças.