Não me posso contar sem livros. Por José Jorge Letria.

25 de Março 2022

O presidente da Sociedade Portuguesa de Autores fala de como se construiu ao ler – e escrever – livros.

Vivemos numa época em que a leitura da vida e dos factos que a integram se faz cada vez mais nos média e cada vez menos nos livros, os impressos e os digitais, como fica demonstrado por inquéritos recentes que mostram que em países como o Portugal é grande o número daqueles que passam um ano inteiro sem terem lido um único livro impresso.

Pertenço a uma geração que se construiu lendo livros e também escrevendo-os, apesar de ter enfrentado o fenómeno castrador da censura, que foi política e sempre psicológica.

Aprendi e aprendemos a descobrir o mundo nos livros, mesmo quando havia pouco dinheiro para os comprar.

Guardo sempre a recordação viva e emotiva dos dias em que adquiri livros como “o Diário de Anne Frank”, ou “o Principezinho”, de Antoine de Saint-Exupéry, que passou, rumo a Nova York, pelo Estoril, antes de apanhar o paquete “Siboney”, que o levou e ao realizador Jean Renoir para a liberdade de uma grande cidade democrática. Recordo também as horas de leitura de “Húmus”, de Raul Brandão, publicado em 1917 e obra maior e inconfundível da literatura portuguesa do século XX, com um lugar único mesmo no panorama internacional, como escreveu David Mourão Ferreira.

Disse o grande escritor Stendhal que “um romance é como o arco, e a alma do leitor é como o corpo do violino que emite o som”. Isto foi escrito em 1835. E Charles Baudelaire, em 1857 dizia: “Tu conheces, leitor, o monstro delicado-leitor hipócrita, meu igual, meu irmão!”. Marcel Proust, falecido há um século, em 1922, elogiaria o talento e superior qualidade de escrita do poeta de “As Flores do Mal”, morto demasiado cedo.

A minha história conta-se com livros e pelos livros, porque foram sempre eles o meu sonho, a minha utopia e a minha liberdade. Tive milhares ao longo da vida, dispersos por várias casas, reencontrando-os sempre com paixão e assombro, convicto de que, ao encontrá-los, é sempre a mim que reencontro e às minhas emoções, nostalgias e mágicas revelações.

E recordo ainda palavras do poeta norte-americano Wallace Stevens quando escrevia, em 1940: “A crença derradeira é acreditar numa ficção que o leitor sabe ser ficção, nada mais havendo além disso; a espantosa verdade é saber que se trata de uma ficção, e que o leitor acredita nela por vontade própria”.

A nossa vida sem livros torna-se praticamente ilegível, porque nos faltam as palavras impressas em que o pensamento se apoia para melhor conhecer o seu caminho.

Quem me quiser tirar os livros priva-me de mim, no coração desta longa história que recordo e reinvento página a página.

Fotografia de destaque: ©Fernando Dinis