Do papel aos bioprodutos: tudo começou em Cacia… há 66 anos

4 de Janeiro 2023

A bioeconomia de base florestal conhece fortes avanços em Portugal, onde uma nova geração de investigadores prepara uma também nova geração de bioprodutos sustentáveis. Na base desta capacidade de hoje está uma inovação portuguesa lançada há exatos 66 anos, em Cacia, Aveiro.

Era ainda madrugada no dia 4 de janeiro de 1957, quando, em Cacia, Aveiro, na então Companhia Portuguesa de Celulose, antecessora da atual The Navigator Company, uma pequena equipa de engenheiros e técnicos se preparava para iniciar uma experiência que mudaria para sempre a indústria portuguesa, bem como o panorama mundial da pasta e do papel, com efeitos que perduram ainda hoje. Pela primeira vez em todo o mundo, era produzida à escala industrial pasta de eucalipto globulus pelo método kraft, o que possibilitou, passadas cerca de três semanas, produzir, também pela primeira vez no mundo à escala industrial, papel com 100% de fibra de eucalipto globulus.

“Pasta branqueada de eucalipto pelo método kraft” (BEKP) – descrita assim, esta inovação portuguesa que começou a nascer no final dos anos 50 poderia passar como uma efeméride técnica resumida aos anais da engenharia química. No entanto, como em todas as disrupções tecnológicas, são os efeitos duradouros que contam.

Contra todas as convicções da época, em Cacia um grupo de pioneiros promoveu um notável processo de inovação: escolheu a espécie de eucalipto radicada em Portugal, o Eucalyptus globulus, e aplicou-lhe o processo kraft, ou ao sulfato (separação química das fibras da madeira com recurso a sulfato de sódio).

Este arrojo dos pioneiros de Cacia foi transformador, ao demonstrar ao mundo as virtudes papeleiras da fibra assim obtida. O eucalipto globulus, apesar de ser uma fibra curta, e à época com uma menor procura e menor valor comercial do que as fibras longas, como, por exemplo, a de pinho, ganhou relevância pelas suas características únicas, as quais foram determinantes para construir a história de sucesso da indústria portuguesa. A esta pasta foram reconhecidos excelentes valores de brancura, opacidade e índice de mão, que, a par da formação da folha, a potenciava como excelente para papéis de impressão e escrita. Mas surpreendeu também pelas resistências, tornando-a igualmente adequada para diversas aplicações na área da embalagem.

Não foi, por isso, preciso esperar muito para assistirmos ao passo seguinte. Logo a 29 de janeiro de 1957, realizava-se, pela primeira vez, o fabrico industrial de papel de impressão utilizando 100% de pasta de eucalipto globulus.

Um sucesso imediato

As pastas produzidas em Portugal a partir do E. globulus cedo se destacaram internacionalmente. Ainda em 1957, saiu de Cacia, pela primeira vez, com destino ao mercado europeu, um carregamento para o grande fabricante de papéis inglês Albert Reed, Co. O papel originado pela pasta de eucalipto em Cacia começava a ser o preferido na Europa, desde as conceituadas oficinas de artes gráficas da francesa Hachette, até à britânica Tullis Russel, que, no fabrico de papéis de impressão de alta qualidade, passou a adotar a pasta de eucalipto branqueado português.

Quase sete décadas passadas, o setor da pasta e do papel representa, de acordo com o INE, 4,5% das exportações portuguesas e 43% das exportações do setor florestal, colocando os seus produtos em mais de 170 países. E a The Navigator Company, sucessora da Companhia Portuguesa de Celulose, é hoje o líder europeu na produção de papel de impressão e escrita e líder mundial no segmento Premium, sendo também o maior produtor da Europa em pasta branqueada de eucalipto e 5º a nível mundial.

Uma herança de inovação

A solidez industrial, a par do conhecimento e experiência acumulados ao longo de quase sete décadas de descoberta das aptidões únicas da fibra do eucalipto globulus, estão a fazer de Portugal um país de vanguarda no estudo de novos bioprodutos com base nesta espécie, enquanto alternativas sustentáveis naturais, recicláveis e biodegradáveis aos produtos que hoje recorrem a matérias-primas fósseis.

Isso mesmo ficou patente com o projeto Inpactus – Produtos e Tecnologias Inovadores a Partir do Eucalipto, o maior investimento em Portugal num projeto de I&D no domínio da bioeconomia de base florestal, com um investimento global de 14,6 milhões de euros.

Com o envolvimento de uma equipa de mais de 200 pessoas, o projeto Inpactus, cujos resultados foram apresentados recentemente, foi desenvolvido em copromoção entre a The Navigator Company, o RAIZ – Instituto de Investigação da Floresta e Papel (o centro de I&D criado pela Navigator em 1996), a Universidade de Coimbra e a Universidade de Aveiro, contando ainda com o envolvimento de outras instituições da academia e de centros de inovação. Ao longo de quatro anos e nove meses, a qualidade da investigação e desenvolvimento tecnológico do Inpactus materializou-se em mais de 37 patentes submetidas ou em preparação. É igualmente visível a inovação nos 66 protótipos e 114 provas de conceito gerados pelo consórcio, bem como pelos produtos inovadores e diferenciadores criados.

De onde até agora se obtinha pasta e papel, já se produzem soluções sustentáveis de embalagem capazes de substituir os plásticos de uso único. E teremos, num futuro próximo, a partir da floresta de eucalipto, soluções que vão dos biocompósitos à base de celulose e bioplásticos, aos biocombustíveis.

Motor de crescimento da floresta

Esta bioeconomia tem-se revelado um motor de crescimento da floresta, fruto da ação de plantação e replantação promovida pela indústria, e da aplicação das melhores práticas silvícolas. Em Portugal, e de acordo com os números oficiais do IFN6 (6º Inventário Florestal Nacional, do ICNF), a floresta representava, em 2015, 36% do território, sendo, assim, a principal ocupação do solo no nosso país. Um valor bem acima dos 7% registados em 1874, data da primeira avaliação formal, na sequência do trabalho do militar Gerardo Perry, publicado em “Geografia Estatística Geral de Portugal e Colónias como um Atlas”.

Ao mesmo tempo que fornecem matérias-primas, as florestas plantadas prestam os denominados serviços de ecossistema, um conjunto de externalidades positivas decorrentes das práticas de gestão sustentável. Entre estas, contam-se o sequestro de carbono, a produção de oxigénio, a promoção de biodiversidade, a proteção do solo, ou a regulação dos regimes hidrológicos. Estas florestas promovem igualmente a fixação de populações, mitigando aquele que tem representado um dos maiores fatores de risco na floresta portuguesa: o abandono das terras e a ausência de gestão.