Do sigilo do laboratório ao sucesso mundial: Como o “Projeto TE-24” colocou Cacia na história da pasta e do papel

27 de Fevereiro 2023

Dava pelo nome de “Projeto TE-24” e foi secretamente desenvolvido em 1956 num laboratório da fábrica de Cacia da Companhia Portuguesa de Celulose, antecessora da The Navigator Company. As suas conclusões revolucionárias surpreenderam o setor da pasta e do papel em todo o mundo e deram origem a duas inovações mundiais.

A fábrica de Cacia da Navigator foi pioneira mundial na produção, à escala industrial, de pasta de eucalipto globulus pelo método kraft, bem como no fabrico de papéis de impressão e de embalagem com 100% de fibra desta espécie. Por detrás desta inovação esteve aquele estudo precursor, elaborado por uma pequena e discreta equipa de cinco pessoas.

Contra todas as convicções e padrões da época, este grupo restrito empenhou-se na análise das condições de utilização do eucalipto globulus, a espécie naturalizada, à época, há mais de um século em Portugal, “para a produção, em Cacia, de pastas cruas e branqueadas”, assim como as “características papeleiras destes produtos”. Nascia o “Projeto TE-24”, dirigido por Joaquim von Hafe, então Chefe dos Serviços de Laboratório, com a colaboração do seu Adjunto, Carlos Alves Valente, e ainda Dulce Capelo Pires Veloso, Maria Adília de Almeida Beirão e António Rodrigues Teixeira, sem esquecer o apoio de colegas da produção, em especial Luís Rolo, na altura Chefe de Serviços da Fábrica de Pastas Químicas.

Reportado ao Conselho de Administração em dezembro de 1956, este trabalho trouxe conclusões inteiramente novas. As pastas revelavam excelentes valores de brancura, opacidade e índice de mão, “com boas características de resistência e boa formação, que fazem prever uma fácil aceitação no fabrico de vários tipos de papel, cabendo na designação geral de papéis de escrita e impressão”, lê-se no relatório final. “Não se trata de simples pastas de enchimento (fillers), pois que as boas características mecânicas obtidas devem permitir dispensar, total ou parcialmente, as pastas branqueadas mais fortes que por vezes se incluem na composição daqueles tipos de papéis para lhes elevar a resistência mecânica”, menciona ainda a mesma exposição dos autores do estudo.

O documento, que integra hoje o acervo histórico da The Navigator Company, é notável pela forma como demonstra a versatilidade da pasta obtida a partir do eucalipto globulus, ao salientar também a adequação para papéis de embalagem, nomeadamente para “sacos, embalagens, folhas e interiores e exteriores das caixas de cartão, etc.”. Menciona igualmente as “perspetivas interessantes de utilização no fabrico de oate de celulose”, referindo-se aos papéis tissue (do francês “ouate de cellulose”) e destacando: “Folhas de 15 g/m2 preparadas no laboratório permitem esperar que o oate de celulose preparado com pasta branqueada de eucalipto seja bastante macio ao tato, uma qualidade muito apreciada neste produto e que nos parece mais fácil de obter com esta pasta do que com a de pinheiro”.

Papéis de escrita e impressão, embalagem e tissue a partir da pasta de eucalipto globulus: as conclusões do relatório foram mais do que pioneiras, assumindo um autêntico cunho visionário. Anteciparam o padrão das décadas seguintes, marcado pela extraordinária aptidão desta matéria-prima numa multiplicidade de aplicações papeleiras.

As conclusões do “Projeto TE-24” mostravam-se, assim, disruptivas em toda a linha. A pasta de eucalipto (fibra curta), vinha demonstrar ao mundo que, ao contrário de outras fibras curtas, como a bétula escandinava, não iria ser uma pasta de enchimento com pouco valor comercial, quando comparado com as outras fibras nórdicas de fibra longa, mas sim uma verdadeira alternativa a estas.

A urgência de uma alternativa ao pinho

Os resultados deste estudo eram tanto mais relevantes quanto, na fábrica da Companhia Portuguesa de Celulose, os equipamentos adquiridos nos Estados Unidos no âmbito do Plano Marshall, que haviam sido projetados para lidar com o southern pine e faziam um trabalho adequado na produção de pasta crua de pinheiro-bravo, também conhecido como pinheiro-marítimo (Pinus pinaster, a espécie utilizada em Portugal), denotavam problemas quando se tentava produzir pasta branqueada para papéis de alta qualidade.

“Quando se tratava de branquear o nosso Pinus pinaster, dado o seu mais elevado teor em lenhina e o caráter mais cromóforo dessa lenhina, a verdade é que a instalação de branqueamento estava subdimensionada e processualmente inadequada. Daí que se obtivessem apenas pastas semibranqueadas, muito depreciadas em qualidade e preço, e com difícil colocação no mercado europeu”, como explicava Manuel Gil Mata, ex-administrador do Grupo Portucel Soporcel, na revista “Pasta e Papel”, em 2011.

Era, por isso, essencial encontrar fibras alternativas, tendo o eucalipto surpreendido da forma mais positiva.

Perante as conclusões do “Projeto TE-24”, o salto do laboratório para a fábrica foi quase imediato. O primeiro fabrico industrial aconteceu muito rapidamente, logo a 4 de janeiro de 1957, data em que, pela primeira vez, se produzia industrialmente no mundo a pasta de eucalipto globulus pelo método kraft. Surpreendentemente, apenas cerca de três semanas depois, a 29, surgiam também pela primeira vez no Mundo os primeiros papéis de impressão e de embalagem utilizando 100% de pasta de eucalipto globulus.

Um sucesso imediato e duradouro

A excecional recetividade dos mercados a esta nova solução de Cacia foi, desde logo, um reflexo da qualidade obtida. As pastas produzidas em Portugal a partir do eucalipto globulus rapidamente conquistaram sucesso internacional, de tal maneira que, logo em 1957, o grande fabricante de papéis inglês Albert Reed, Co. tornava-se cliente. Ao mesmo tempo, o papel originado por esta pasta começava a ser o preferido um pouco por toda a Europa, desde as conceituadas oficinas de artes gráficas da francesa Hachette, até à britânica Tullis Russel, que, no fabrico de papéis de impressão de alta qualidade, passou a adotar esta pasta desde essa data até 2015, altura em que o grupo deixou de produzir papel.

Hoje, a herança perdura. Quase sete décadas passadas sobre aquele tão arrojado quanto discreto “Projeto TE-24”, que desafiou todo o conhecimento da época, o firme compromisso com a investigação e a inovação representa a estrutura de identidade da Navigator.

Testemunho deste ADN, a Companhia está hoje na liderança da bioeconomia de base florestal, assente nas aptidões e versatilidade únicas do eucalipto globulus, para o desenvolvimento de uma nova geração de bioprodutos alternativos aos que atualmente recorrem a matérias-primas fósseis.

As repercussões extravasaram as fronteiras da empresa. Sem o caminho pioneiro de Cacia, a indústria não teria prosperado em Portugal como prosperou, dadas as limitações qualitativas das fibras do pinho nacional para papéis de alta qualidade. Mais ainda, não fora a industrialização bem-sucedida do “Projeto TE-24” e Portugal não teria criado este cluster único no País, que domina todas as fases da cadeia de valor, desde I&D na produção de plantas e silvicultura, até à comercialização à escala global de marcas de reputação internacional, como a marca de papel Navigator Office Paper – a marca portuguesa de bens mais vendida no mundo. Um cluster ainda com enorme importância socioeconómica, particularmente no mundo rural. Também não haveria hoje um mercado tão pujante de fibras de eucalipto a nível mundial, que representam atualmente mais de 70% das fibras curtas, mais de 40% do total de fibras de celulose e mais de 25 mil milhões de dólares de vendas anuais.

O relatório final do projeto TE-24, que hoje faz parte do acervo histórico da Navigator.