Nunca foram tantas as possibilidades de armazenar dados e imagens. Mas, aparentemente, nunca a capacidade de usufruir desse “arquivo” foi tão baixa. É a época em que coexistem fenómenos como a “acumulação digital” e a “não memória”.
Ao longo dos séculos, a inovação disruptiva associada a novas formas de comunicação esteve sempre ligada a mudanças significativas no modo como armazenamos e interagimos com a nossa memória coletiva.
No presente, como mostra um estudo de 2022, conduzido por investigadores do University College de Dublin e da London School of Economics & Political Sciences, “as tecnologias digitais, em particular a internet e as tecnologias baseadas nas TIC, mudaram dramaticamente o modo como as nossas memórias coletivas são criadas e modeladas”. Em Portugal, o investigador Francisco Rui Cádima alertava, no artigo “A memória e a era digital”, para a possibilidade de a grande capacidade de armazenamento de informação associada ao digital estar, paradoxalmente, associada a uma “espécie de não memória”.
Do mesmo modo que guardamos uma caixa ou um pedaço de tecido “que um dia pode ser útil”, armazenamos fotografias, emails e ficheiros de texto para os quais nunca voltaremos a olhar. A ciência já deu um nome a este fenómeno, que pode ganhar contornos patológicos: acumulação digital. Muita da informação armazenada digitalmente não é, efetivamente, usada. Desde os emails que não são lidos nem eliminados (metade não é aberta e só um terço é respondida, de acordo com investigação recente), às fotografias que se acumulam em nuvens, discos externos de computador e memórias de telemóvel, há uma tendência para acumular quantidades substanciais de conteúdos digitais, que é agravada pela acessibilidade, usabilidade e grande disponibilidade de escolha, quer de equipamentos tecnológicos, quer de aplicações e redes sociais.
Um fenómeno que, levado ao extremo, pode conduzir à acumulação digital, enquanto condição patológica. Os sintomas são semelhantes aos da acumulação patológica de objetos físicos: perda de perspetiva, stress e desorganização, com impactos ao nível da vida pessoal e profissional.
É preciso ter imagens que lembrem o poder da fotografia
Edgar Martins, fotógrafo português radicado no Reino Unido e recentemente distinguido como fotógrafo do ano pelos Prémios Mundiais de Fotografia Sony 2023, relaciona este tipo de comportamento com aquilo a que os psicanalistas como Slavoj Zizek chamam “interpassividade”. “Zizek dava como exemplo os filmes que estavam guardados nas nossas bibliotecas de vídeo – hoje seria o Spotify ou os downloads que fazemos – para assistir ‘um dia’. A satisfação deixou de estar associada não ao ato de ver o filme, mas ao facto de o ter guardado”, diz. O mesmo se passa com a fotografia: “Já não fruímos das fotos que tiramos. É o computador ou o cartão de memória que tiram todo o proveito da imagem”.
Para o fotógrafo, esta situação singular está diretamente ligada à promoção do consumo, “em detrimento do processo criativo e da nossa relação com a imagem”. No limite, pode levar ao esquecimento do poder da imagem. “Ao sermos bombardeados com uma grande escolha de imagens, acabamos por não ver nada”, alerta Edgar Martins. Em vez de ter a fotografia como um meio que tudo capta, temos de depurar a relação com a fotografia de modo a produzir imagens que guardem segredos”, defende.