Luís Pedro Nunes, jornalista e escritor, fala sobre gatos e papel. Uma ligação que remonta à Idade Média.
O meu gato, como é suposto fazer quando escrevo, coloca-se naquela posição egípcia, sentado, com a cauda a fazer um virote sobre a base, e assim permanece estático enquanto dedilho nas teclas. Dormitando, mas vigilante. Há uma suposta relação intrínseca que une gatos a escritores, que Hemingway, T. S. Elliot ou Mark Twain, só para citar três nomes tirados de uma era e cultura hipermasculinas, vieram estilizar. O escritor, na penumbra do seu trabalho solitário, afinal tinha um gato, fosse pelo espírito livre de ambos, fosse pelo facto de o gato não chatear e ser de muito baixa manutenção, fosse por de vez em quando ambos terem a necessidade afetiva de se aninharem. Havia uma relação simbiótica entre intelectos.
Mas é no que dá ler. Destrói boas histórias. Os gatos enquanto espécie nunca foram amigos dos escritores. Os gatos existem como linhagem para serem guardiões dos livros. Sem livros, não havia gatos disseminados pela Europa e depois pelo mundo. Na Idade Média, os gatos foram adotados como animais domésticos pelos frades dos mosteiros para impedirem os ratos de destruir os preciosos manuscritos que ali eram produzidos. De tudo o que a comunidade tinha, o manuscrito era um dos bens mais preciosos que um rato podia destruir – nomeadamente, quando falamos da Bíblia ou de outros textos que serviam para guardar o ensinamento divino. E a expansão do Cristianismo enquanto palavra escrita foi a expansão do gato. De tal forma, que os gatos eram alimentados com os restos da comida dos monges – essencialmente peixe, pois com os seus jejuns raramente incluíam carne (sim, os gatos gostam de carne).
Li algures que era uma injustiça chamar Rota da Seda à interligação de caminhos que ligou a Ásia Meridional e a Europa e que levou ao florescimento do comércio e troca de ideias e à realidade que vivemos hoje. Deveria chamar-se Rota do Papel. De entre todos os bens que circularam, o papel foi sem dúvida o que levou a uma imparável transformação deste lado, vindo da China e chegado à Europa via Al-Andaluz e Península Ibérica. A explosão do pensamento com a impressora de Gutenberg permitiu libertar as ideias em livros, alguns perigosos e proibidos, e mudar a Europa, e depois o mundo, transformar a religião e difundir a ideia de Liberdade e Igualdade. Com a ajuda dos gatos, para proteger esses livros, folhetos, jornais, de serem comidos pelo statu quo. Repare-se que uma das grandes pestes na Europa coincide com uma caça às bruxas em que resolveram implicar com os gatos e tentar dizimá-los. Sem gatos, aumentaram os ratos, portadores da peste.
Tudo isto para dizer que o meu gato está a olhar para o meu ato de escrever, mas algures no seu ADN espera que aquilo que eu esteja a produzir saia em papel. Um dos seus motivos primevos de existir: guardar livros, revistas, jornais, de serem destruídos. E muitos dos que escrevem e têm gatos a olhar por eles estão convencidos de que os seus felídeos domesticados estão a zelar por si e pela sua escrita e não pelo suporte da mesma, o papel.
Não me chateio com o meu gato. Aliás, até me alivia que não tenha expectativas sobre a qualidade do meu trabalho, e imagino que sinta que algures noutra ponta da linha de produção exista um outro gato a zelar para que este texto não seja destruído por um camundongo ignorante.
O que gostava que ele soubesse é que há uma diferença quando se escreve, quando se imagina o espalhar das letras numa folha de papel ou um resultado de código num ecrã. Quando escrevemos um livro, sabemos que podemos perdê-lo para a inexistência editorial se o papel for o errado. Se escrevemos para uma boa revista, sabemos que o texto será sempre bom, porque há algo de erótico quando as folhas enceradas se descolam pela primeira vez e a luz reflete na folha branca e tangível. Os meus textos que guardei em papel, de revistas e livros, superaram o teste do tempo. Os que entreguei a uma nuvem de um jornal “para guardar” desapareceram como se um enxame de ratos tivesse obliterado uma biblioteca medieval sem gatos, e às ordens de um Torquemada sem nome, atrás do pomposo “hacker”. Serviu-me de lição. O que me é precioso é guardado em papel. Até porque tenho um gato em casa.
Por Luís Pedro Nunes, jornalista e escritor