Os arquivos estão a passar a digitais, mas os documentos físicos têm valor intrínseco, para além do conteúdo que registam. A própria digitalização serve também como preservação do original em papel, que se mantém como o guardião de memórias por excelência.
São mais de 100 quilómetros de documentos que estão guardados nos 25 mil metros quadrados da Torre do Tombo, em Lisboa. Aos documentos originais ali preservados – o mais antigo dos quais, representado na foto acima, pertence ao Mosteiro de Cete, datado do século IX, com a apresentação da igreja de Lardosa –, juntam-se os cerca de 100 milhões de imagens disponíveis no arquivo digital. E, embora Silvestre Lacerda, o diretor da instituição, não tenha dúvidas de que o futuro dos arquivos é digital, assegura que os documentos em papel têm uma importância que nunca será perdida: a de testemunhos de uma época.
“A partir de 2005, iniciámos um processo de digitalização de documentos, em que mantivemos os originais e transferimos o suporte para o digital”, conta o diretor dos arquivos nacionais. Das 30 mil imagens digitais disponibilizadas gratuitamente ao público no início do século, a Torre do Tombo passou para os atuais 100 milhões, um número que continuará a crescer até 2026. “Aumentámos o centro de dados e passámos de 750 terabytes, em 2005, para cerca de três petabytes (um petabyte são mil terabytes), com o PRR”, afirma.
Digital como salvaguarda do papel
Curiosamente, a preservação dos documentos físicos é uma importante mais-valias associada à digitalização dos arquivos. “O manuseamento é um dos principais fatores de degradação dos materiais mais antigos, em particular os dos séculos XVII, XVIII e XIX”, explica Silvestre Lacerda.
“A memória não é só do passado, é uma memória do presente e é uma projeção de memórias futuras”, garante o diretor, para quem os arquivos são “evidências das sociedades” e os documentos têm um valor intrínseco.
A visita recente que duas delegações internacionais – uma da China e outra do Vietname – fizeram à Torre do Tombo é disso um exemplo. “O motivo era um mapa do século XVI, do Fernão Vaz Dourado, que inclui as ilhas que estão em disputa no Tribunal de Haia”, explica Lacerda. O documento mostra o mar do Sul da China, onde estão localizadas as ilhas de Paracel e Spratly, disputadas por vários países, e torna-se importante nas alegações feitas junto do tribunal internacional, quer pela data, quer pela toponímia. “Tem os nomes das terras – embora aportuguesados – e eles conseguiam justificar, cada um com os seus argumentos, as suas posições”.
A importância dos documentos físicos é inegável: “Primeiro, porque são o testemunho de uma época – esse é, claramente, o valor essencial que têm. Não é pela antiguidade que os documentos têm maior ou menor importância, é pela informação que contêm”. Para Silvestre Lacerda, o futuro passa por encontrar formas de adaptação à realidade digital: “A Torre do Tombo não acabou com o pergaminho e não vai acabar com o papel”, diz.
A experiência sensorial da memória
“As nossas memórias estão muito associadas a cheiros, ao toque, e não apenas ao que vemos”, explica Teresa Margarida Rebelo, proprietária da “O Manuscrito Histórico”, uma loja lisboeta dedicada a mapas, livros e manuscritos antigos. O negócio familiar criado pelo pai e irmão de Teresa no ano do incêndio do Chiado tem em colecionadores e investigadores os principais clientes.
“Os colecionadores querem o documento original, e não uma cópia digital ou a impressão feita a partir dela”, garante Teresa Rebelo. E se o contexto e o valor histórico pesam nesta opção, a experiência sensorial e a relação direta com o objeto em causa também influenciam. “Um colecionador que se dedique a manuscritos de escritores, por exemplo, quer sentir o papel, ver a tinta usada, a caligrafia de quem escreveu”, e isso, diz, é muito mais percetível com o toque: “Os sentidos fazem a diferença”.
A isto somam-se todo um conjunto de informações, ou a raridade associada a determinados suportes físicos. “O tipo de papel usado é diferente consoante a época. Se falarmos de cartazes de cinema da década de 1930, quando muito poucos eram produzidos, um original é, à partida, um documento raro”, diz Teresa Rebelo, que dá como exemplos os cartazes originais do filme Aniki Bobó, de Manoel de Oliveira. E no seu caso pessoal, não tem dúvidas: é-lhe muito mais fácil guardar na memória uma frase que tenha lido em papel do que outra em que tenha posto os olhos através de um ecrã.
A importância dos documentos físicos é inegável: “Eles são o testemunho de uma época.”
Silvestre Lacerda, diretor da Torre do Tombo
“As nossas memórias estão muito associadas a cheiros, ao toque, e não apenas ao que vemos.”
Teresa Margarida Rebelo, proprietária da loja “O Manuscrito Histórico”
*Carta de fundação da Igreja de Lasrdosa – o documento mais antigo que se guarda na Torre do Tombo (séc. IX).