“Estamos biologicamente determinados para reagir à incerteza com ansiedade”

2 de Dezembro 2022

Os efeitos disruptivos da pandemia, conflitos armados, a imprevisibilidade do agravamento das condições socioeconómicas, os níveis de dependência e anestesia emocional cada vez mais vinculados à evolução acelerada da tecnologia da informação… Uma conjuntura complexa, inédita para muitos, com consequências do ponto de vista da exaustão emocional, tanto do indivíduo quanto das famílias e das organizações. A psicóloga Ana Bispo Ramires deixa pistas para lidarmos com a saúde mental em tempos de incerteza.

“A resposta de ansiedade face a contextos de incerteza é normal e expectável, uma vez que nós estamos sempre a tentar encontrar ferramentas de controlo e queremos que o nosso dia-a-dia seja o mais previsível possível”, afirma Ana Bispo Ramires.

A psicóloga, coordenadora do Grupo de Atuação em Psicologia & Performance (GAPP), refere ainda que a ansiedade, só por si, não é um problema, desde que se aprenda a lidar com essa característica e a utilizá-la a nosso favor. Fica assim claro que nem todos reagimos da mesma forma a esta incerteza que se instalou nas nossas vidas. “As condições de envolvência só são uma pista, um dado, uma informação a ser considerada; aquilo que, depois, cada um de nós faz com essa informação, é completamente distinto de pessoa para pessoa e depende dos recursos psicoemocionais que cada uma possui – daqui resultará se iremos ultrapassar a situação de forma mais bem-sucedida (ou não) e com menos (ou mais) sofrimento psicológico”, confirma a especialista.

Literacia emocional

A pandemia, e agora também a guerra, só vieram exacerbar uma característica-chave dos portugueses enquanto população: “uma preocupante desconexão com as nossas emoções”, explica Ana Bispo Ramires. “Se já somos uma população com poucos recursos psicoemocionais, porque não os treinámos, porque o contexto académico não nos expõe a essa aprendizagem de forma sistematizada e, demasiado frequentemente, recorremos à psicologia já em crise e não numa lógica de promoção de competências, os fatores de incerteza só vêm agravar essa situação. Por isso, o que se observou com a pandemia é que, tanto do ponto de vista do indivíduo, como das famílias, das organizações e da sociedade, quem estava melhor capacitado antes, ficou melhor depois. Ou seja, aproveitou a circunstância da instabilidade e da incerteza para, usando os seus recursos de resiliência, sair da situação melhor do que estava antes. Aproveitou a circunstância a seu favor, para evoluir.”

“A situação agora não é muito diferente”, continua a psicóloga. “Ainda não tínhamos tirado a máscara, chega a guerra. Há muita imprevisibilidade. É preciso apostar na literacia emocional das pessoas.”

A saúde mental reflete-se em todos os aspetos da vida das pessoas. Se não estamos bem do ponto de vista psicoemocional, não vamos conseguir desempenhar bem os nossos papéis de mulher/marido, mãe/pai/filho, amigo, funcionário, chefe. Nestes cenários de incerteza, no entanto, explica a psicóloga, “beneficiamos sempre de algum outro contexto da nossa vida que esteja estável”. Ter estabilidade no casamento e sentir-se apoiado pela família, ter um emprego seguro, numa empresa sólida que investe nos projetos e nas pessoas, tudo isso ajuda a “navegar” a incerteza do contexto atual”, refere.

O poder da resiliência

Os tempos que vivemos são incertos e chegam a ser dramáticos. Mas Ana Bispo Ramires é perentória: “Temos de ir atrás do que podemos fazer com isso, temos de perceber o que podemos fazer para mudar, para melhorar, para ganhar capacidade em cima do que está a acontecer. Isso é um dos princípios da resiliência humana: se eu não consigo mudar esta circunstância, como é que a posso usar como um degrau? Temos de olhar para dentro, para nós. Em vez de nos dispersarmos a queixar que o palco está torto, devemos tentar perceber como é que dançamos neste palco.”

“Há aqui também, culturalmente, um grande mal-entendido”, diz. “Falamos de emoções negativas como algo de que temos de fugir, quando não é verdade: temos de estar disponíveis para surfar ondas negativas, para nos conectarmos com e permanecermos nas emoções negativas, para depois podermos saber que recursos temos de ativar para sair do negativo (com a importante aprendizagem que transporta) para o positivo. São as emoções negativas que têm o potencial de catalisar, de nos ligar às nossas partes que não estão a funcionar bem e de nos permitir modificá-las. É assim que crescemos.”

Uma maratona a longo prazo

A saúde mental, diz Ana Bispo Ramires, é um tema igual às questões do clima: só vai ser corrigido geracionalmente. “Não vamos ser nós – indivíduos, famílias, organizações – a ficar com os louros da sua resolução, mas se não começarmos a semear, não vai acontecer nada daqui a 15 ou 20 anos. É igual a todos os projetos transgeracionais, em que a responsabilidade inicial é de ser suficientemente altruísta para deixar que seja outro a fazer a ‘inauguração’ do que quer que seja; trata-se de lançarmos as bases para podermos ter, de facto, uma sociedade com melhores indicadores de saúde mental no futuro.”

Para o momento complexo que atravessamos, o pensamento positivo é bom, mas as incertezas não se resolvem com wishful thinking e a saúde mental não cabe num arco-íris colorido. “Não vamos dizer que ‘vai ficar tudo bem’, porque o mais provável é que vá ficar tudo ainda pior do que está”, conclui Ana Bispo Ramires. “Mas às vezes é mesmo assim, das grandes crises surgem grandes aprendizagens e oportunidades. Temos de nos focar em nós próprios, nas áreas positivas da nossa vida, e em tudo o que podemos fazer para melhorar.”

“É preciso apostar na literacia emocional das pessoas.”