O excesso de luz à noite tem consequências. No consumo de energia, mas também na qualidade de vida. A poluição luminosa, assunto até aqui ignorado, começa a preocupar cientistas e cidadãos. Saiba o que é e o que pode fazer para “recuperar” o céu.
Portugal tem quatro vezes mais luz no exterior por habitante do que a Alemanha. Um pormenor tão curioso quanto preocupante. É que este excesso de luz tem efeitos negativos, sejam no sono do cidadão, na migração das aves ou nas alterações climáticas. Há quem diga que se trata de um fenómeno inevitável, sinal de progresso e modernidade, mas não deixa de ser assunto discutível. Afinal, o que é isto da poluição luminosa?
Raul Cerveira Lima, professor de Física na Escola Superior de Saúde do Politécnico do Porto, investigador no Centro de Investigação da Terra e do Espaço da Universidade de Coimbra, e autor de vários estudos sobre o tema, explica-nos que a “poluição luminosa pode ser definida como a luz artificial à noite, passível de gerar impactos negativos”, incluindo-se ainda neste conceito “o encandeamento e a luz intrusiva, isto é, luz que incide em locais onde não é desejada – por exemplo, vinda da rua e entrando quarto dentro”. Aparentemente inofensiva, a verdade é que esta luz acaba por ser “geradora de impactos negativos nos ecossistemas, no céu noturno e, potencialmente, na saúde, pela perturbação dos ritmos circadianos”, adianta o especialista.
Raul Cerveira Lima
Os impactos são variáveis, consoante a perspetiva pela qual se analise (energia, céu, ecossistema, saúde…), mas têm vindo a ser comprovados pela ciência. Estudos recentes mostram, aliás, que “há espécies animais (incluindo o ser humano) e vegetais que são afetadas mesmo por pequenas quantidades de luz”, nota Raul Cerveira Lima. Especificando, explica que “a poluição luminosa limita-nos, desde logo, a possibilidade de contemplação do céu noturno, fonte fundamental de conhecimento científico e de contacto com a natureza no seu todo”. Isto porque a luz emitida para cima e para os lados reflete-se e difunde-se nas poeiras e fumos em suspensão no ar, percorrendo grandes distâncias (centenas de quilómetros) e tornando o céu noturno claro. Mas não é só. A este mal acrescem outros, não menores, designadamente os desequilíbrios que provoca nos ecossistemas, com consequências “conhecidas e preocupantes” e outras que permanecem “ainda desconhecidas”.
Sono, migrações e predadores
É hoje sabido que este excesso de luz “afeta a migração das aves, por estas se desorientarem com as luzes das povoações ou outras (no meio natural as aves guiam-se pelas estrelas e Lua)”, mas também insetos, répteis, aves não migradoras, mamíferos, fauna aquática, plantas… “Têm-se descoberto impactos cuja efetiva gravidade possivelmente só se detetará a prazo”, salienta Raul Cerveira Lima, notando que “os ecossistemas desequilibram-se de formas muitas vezes imprevistas”. Por exemplo, “pela alteração de relações presa-predador em locais iluminados: após milhões de anos de noites escuras, predadores e presas tornaram-se, em poucas décadas, visíveis uns aos outros”.
Para lá destes efeitos, mais ou menos previsíveis, o excesso de luz representa, obviamente, um aumento de consumo de energia, o que se traduz em custos acrescidos para o cidadão e efeitos nas alterações climáticas e na delapidação de recursos naturais, uma vez que “há sempre um impacto na geração da energia necessária para essa luz supérflua”.
Finalmente, e não menos importante, de referir a influência da poluição luminosa nos nossos gestos diários, seja nas ruas e estradas ou no interior das nossas casas (são muitas as pessoas que, para dormir, têm de fechar os estores, porque o candeeiro da rua faz entrar luz pela janela).
Portugal sem regras
E o que está a ser feito para combater o problema? Muito pouco. Ainda assim, e à falta de qualquer regulamentação internacional ou europeia, alguns países e regiões têm inovado com legislação própria. O caso da França é o mais recente, com a publicação, em dezembro passado, de legislação sobre a matéria. Mas a Catalunha, as Canárias, a Lombardia ou a Eslovénia também já possuem regulamentação. “Umas e outras procuram limitar a luz artificial na atmosfera tendo em conta o tipo de luminária, a temperatura de cor da luz, a quantidade de luz ou os períodos da noite em que deve haver menos luz”, nota Raul Cerveira Lima, adiantando que, também na Alemanha, o Governo prepara “medidas adicionais de redução da poluição luminosa, por, entre outros motivos, suspeita de estar a contribuir para o declínio maciço de insetos”.
Em Portugal, não existe qualquer regulamentação, salvo uma recente resolução da Assembleia da República (nº 193/2019) que recomenda ao Governo a adoção de medidas de mitigação da poluição luminosa. Uma advertência urgente, num país onde “o crescimento da luz tem sido consideravelmente superior à média mundial”, nota Raul Cerveira Lima, revelando que os resultados da investigação mais recente, liderada pelo físico Fabio Falchi, demonstram que Portugal é, atualmente, “o país da Europa onde mais se ilumina por habitante e por PIB”. As principais cidades estão sobre-iluminadas, com luz durante 24h. E para isso, acusa o investigador, muito tem contribuído “a chegada em massa dos LED brancos – com comprimentos de onda abaixo dos 500 nanómetros”, desconsiderando-se alternativas como os LED âmbar ou pc-âmbar, com impactos globais muito menores. Em muitos casos, diz, “os fluxos luminosos utilizados na via pública mantiveram-se ou aumentaram com estes LED brancos, que estão também a ser instalados em zonas onde antes não existia luz artificial”.
É urgente agir
Por tudo isto, defendem cientistas e ambientalistas, é urgente rever as normas europeias de iluminação de estradas e ruas, envolvendo neste planeamento equipas multidisciplinares, que incluam investigadores em poluição luminosa, físicos, biólogos, cientistas sociais e arquitetos, e não apenas empresas de distribuição de eletricidade e empresas ou entidades ligadas à eficiência energética. “Apesar de sucessivos alertas, a ciência continua a ser posta à margem das discussões em matérias que têm impacto na sociedade e no ambiente”, lamenta o investigador. Raul Cerveira Lima está consciente de que “a pedagogia desde cedo – no ensino básico e secundário – é fundamental, mas não basta”. É necessário, defende, “que as gerações mais velhas participem na recuperação do céu noturno, e sensibilizar para os impactos da luz versus a real necessidade de iluminar tudo e mais alguma coisa”. A propósito, lembra que “há 35 anos a Via Láctea era visível da cidade do Porto” e que “as gerações mais novas não conhecem um céu estrelado e não imaginam o que estão a perder”. Finalmente, diz ainda, “há um mito que tem de ser eliminado: o de que a segurança – criminal ou rodoviária – está associada a muita luz, ideia que é contrariada por estudos científicos e relatórios policiais”.
Os estudos estão feitos e os alertas lançados. Enquanto aguardamos pela sensibilização dos decisores e as medidas dos legisladores, resta-nos a nós, cidadãos, começar (ou continuar) a protagonizar pequenos grandes gestos capazes de minimizar este problema… menos visível.