Numa edição integralmente dedicada ao tema da Incerteza, escutámos dezenas de pessoas para perceber como lidam com a mudança e a imprevisibilidade. E desafiámos o escritor José Luís Peixoto a refletir sobre o como tudo isso se manifesta nas nossas vidas. O resultado foi este ensaio inédito.
Agora, temos possibilidade de saber um pouco mais sobre o passado. Antes, fizemos juízos superficiais, fomos adolescentes mas, agora, finalmente, conseguimos perceber que, tal como estamos aqui, também as gentes do passado estiveram aqui. Sabemos reconhecer a incerteza que viveram porque também nós a vivemos. Antes, estávamos no engano da cronologia. Ao observar acontecimentos desde a sua conclusão, depois de tudo resolvido, parecia-nos que as penas do passado tinham sido suavizadas pelo seu fim. Na mesma aula de história, tínhamos aprendido quando começou e quando terminou a guerra. Não percebemos logo que quem a estava a viver, no centro da destruição, apenas entendia que tinha começado, não possuía forma de calcular quando terminaria ou, mesmo, se chegaria a terminar. Nos juízos superficiais que fazíamos, na nossa irritante ignorância, afirmávamos que se começou, haveria de acabar. Esquecíamos que o desfecho mais comum das guerras é não terem fim.
Avaliávamos o passado da mesma maneira que assistimos a um filme. Quando chega o final redentor, acreditamos que todos os perigos sentidos pelas personagens valeram a pena. Mas, na vida, as provações são sempre incerteza. Mais tarde, falhamos ao avaliar a angústia que geraram porque precisamos de imaginá-la. Por isso, agora, depois de experimentarmos o terrível espanto da incerteza, temos possibilidade de saber um pouco mais sobre o passado. As dificuldades que os nossos pais nos contaram, e que desvalorizámos, os desafios de estrangeiros há séculos, ou os desafios que os nossos vizinhos precisaram de superar hoje de manhã, todos foram incerteza.
Habituamo-nos com demasiada facilidade ao impossível. Damos atenção a detalhes, grãos de poeira sobre a superfície do tempo, porque acreditamos que o essencial não muda. Adormecemos todos os dias com a convicção de que, na manhã seguinte, abriremos os olhos para o mesmo mundo. Essa é uma crença que não aprofundamos, existe em silêncio, como um cenário por detrás dos pensamentos. Nessa convicção sem palavras, esquecemos que o telefone pode tocar a qualquer instante, o médico pode aproximar-se a fixar-nos nos olhos, de cara séria, podemos ligar a televisão e as notícias estarem a falar de nós. Podemos sair à rua e, de repente, muda tudo. Agora mesmo, há um certo silêncio que nos rodeia. É a ausência desse transtorno súbito. Num momento como este, alguém ou alguma coisa nos bate à porta, e termina o silêncio.
A certeza é um equívoco. Abrigamo-nos nela, parecemos doidos a fazerem vida no interior de uma casa invisível. Concentramo-nos em tarefas quotidianas, atentos como crianças, e ignoramos as divisões invisíveis que nos albergam, à mercê do capricho de qualquer intempérie que, por motivos que não precisa de partilhar connosco, decida destruir-nos. Sim, sim, pode acontecer, mas não vai acontecer, respondemos ainda arrogantes. E guardamos rancor perante quem nos desinquieta com lembranças funestas. Pode acontecer, já sabemos que pode acontecer, foi-nos dito tantas vezes, explicado de todas as formas, afirmado com toda a clareza, mas não vai acontecer. No nosso íntimo, porque ainda não aconteceu, acreditamos sem dúvidas que não vai acontecer.
“A certeza é um equívoco. Abrigamo-nos nela, parecemos doidos a fazerem vida no interior de uma casa invisível.”
A incerteza é uma falha nesse mecanismo, roda dentada que, com ou sem explicação, perde o contacto com as restantes rodas dentadas. Então, esse é o momento em que, de repente, pensamos: e se acontecer mesmo? E se o que nos disseram tantas vezes, explicado de todas as formas, afirmado com toda a clareza, estiver a ponto de acontecer? Há um inverno que só existe no instante dessa constatação. É glaciar o frio de quando as paredes da casa invisível desaparecem completamente.
Ainda não usei a palavra, mas sim, estou a falar da morte. Estou a falar de viver, com planos para amanhã, para a próxima semana, para o próximo mês, para daqui a dois anos, para um período de tempo que não queremos especificar completamente, e estou a falar de morrer, esses planos a perderem toda a validade, como notas falsas apreendidas pela polícia. Reduzida ao essencial, essa é a estrutura elementar da incerteza: estar vivo, saber que se vai morrer, não saber quando. Ou seja, estar numa situação, saber que vai mudar, não saber quando. Pode ser na próxima vírgula, esta que passou. Não, afinal, ainda estamos aqui. Mas também pode ser no próximo ponto. Também não foi. Mas também pode ser a meio de uma palavra, qualquer uma. Ou no fim de um parágrafo.
Viver e morrer, tão cru. Somos mosquitos que se lançam de encontro a lâmpadas acesas em noites de verão. Embora nos achemos superiores aos mosquitos, não queremos ser comparados com insetos tão pequenos, esta afirmação é muito menos metafórica do que estamos dispostos a acreditar. Falta pouco para também nós sermos gente do passado e, através do tempo, vermos a nossa incerteza minimizada por espertalhões de juízos superficiais, adolescentes de qualquer idade. Não sabemos exatamente quanto falta, a única certeza é a incerteza.